quinta-feira, dezembro 28, 2006

Natal, Ilusão Psicológica

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Porque nos faz pensar e a importância de todo o conteúdo o justifica, reproduzimos aqui, na integra, o artigo de Ivete Carneiro, publicado no Jornal de Notícias, no dia 24 de Dezembro, intitulado "Época para pagar dívidas de afectos"

"À partida, a culpa é atribuída às compras. A falta de tempo, de criatividade e, sobretudo, de dinheiro, transforma o Natal em sinónimo de ansiedade para muita gente. Na verdade, disse-nos um recente inquérito internacional, para perto de metade dos portugueses. E além das compras, há também os postais, a festa, a cozinha e os gastos. Um stresse material que para boa parte das pessoas não passa de mera capa para algo bem mais profundo a descoberta do afastamento afectivo e, no fim da linha, da solidão...

Comecemos pelos números. O dinheiro. Segundo o Banco de Portugal, os cartões Multibanco portugueses intervieram só em Dezembro do ano passado em operações envolvendo 5761 milhões de euros 38,3% deles (2200 milhões) foram investidos em compras e outros 37,5% saíram das caixas ATM. Um recorde anual, sem sombra de dúvida, e um número "stressante" em época de crise.

A obrigação da dádiva

"A pressão para o consumo é tal que não permite que as famílias façam o controlo do seu orçamento", explica-nos a socióloga Fernanda Santos, colaboradora da associação de defesa dos consumidores Deco. E, associada à falta de tempo (são cada vez mais aqueles que contribuem para o inferno das compras de última hora), essa pressão social acaba por gerar alguns erros que anulam definitivamente o espírito natalício.

Muitas vezes, "as compras não são reflectidas, não há tempo para comparar preços e para pensar no presente mais adequado. Já não há paciência, só se quer comprar qualquer coisa" e termina-se comprando "o mais dispendioso".

E porquê? Porque dar tornou-se uma obrigação. Simplesmente porque é cada vez mais a fórmula encontrada para compensar no Natal - época de partilha, afectividade e carinho - a falta de todas estas dádivas. E para contornar o sentimento de culpa, explica o psiquiatra e psicanalista Jaime Milheiro.

"As pessoas têm cada vez mais falhas no que toca à troca de afectividade e carinho, estão cada vez mais afastadas e logo desde crianças". E a "obscenidade sociológica" do excesso consumista revelado pelo Banco de Portugal não passa, assim, do "pagamento de dívidas afectivas". A troca real vai-se "cada vez mais insensivelmente dirigindo para a troca material", transformando o Natal numa "ilusão psicológica" e numa "mentira social". E, a prová-lo, aponta as prendas de pais afastados dos filhos "São geralmente os que mais dão".

A solidão no sapatinho

E isso gera stresse? Jaime Milheiro entende que sim - e de duas ordens a psicológica, pela culpa, a falta, a dívida não cumprida, nem sempre consciente; e a social, "em que é necessária toda uma mobilização de esforços, dinheiro, procura e perda de tempo que a própria aquisição do objecto implica". A prová-lo estão os números do já referido inquérito. Os portugueses são recordistas no sentimento de solidão e surgem a meio da tabela das intenções de compra de prendas, enquanto na Holanda, o país onde menos se oferece no Natal, pouquíssimos admitem sentir-se sós.

A equação pode contudo não ser válida para toda a gente e tende a ser mais pronunciada à medida que aumentam as possibilidades económicas. "Enquanto o estômago estiver vazio, os sentimentos de culpa não ocupam lugar", diz o psicanalista, que já ouviu no seu consultório incontáveis desabafos sobre "o stresse do cumprimento de uma obrigação social", só porque tudo o que envolve o Natal "é politicamente correcto".

Porque o Natal, ao fim e ao cabo, não é mais do que a realização do "desejo de reunião", essencial ao ser humano, com as pessoas mais significativas. E ainda para mais "patrocinada por uma entidade divina que vem ao Mundo para nos redimir dos nossos pecados e nos proteger das nossas fragilidades". Uma "essencialidade" tão intrínseca que, segundo um estudo efectuado na Finlândia - afinal, a terra do Pai Natal -, 95% das pessoas dizem viver o Natal. Apesar de todo o stresse...